DISCURSO INADEQUADO >> Carla Dias >>
Dane-se você, meu caro, que sai de casa para o trabalho, acreditando no receber pelo oferecido, na fada da justiça, no conto do vigário que é a equidade. Dane-se a sua insistência em defender identidade, em exigir o que acredita ser justo, ou o que algum regulamento inoportuno reza ser seu por direito.
É tudo bobagem, não vê?
Dane-se cada desejo seu, que mora na labuta dedicada a parir realização, e cada um daqueles que você ama porque ama e ponto. Amor feito o seu não enche barriga, não adquire imóveis, não beneficia quem deveria, não concorre à herança. É profundo, mas e daí? Profundidade não justifica o injustificável, ele devidamente aplicado, a fim de se alcançar o benefício do poder.
Poder importa, meu caro.
O que você tem a dizer, que permaneça nas mensagens mal redigidas que troca com suas aventuras eventuais. Não há espaço para você aqui, entre nós outros, nesse lugar que não aceita destempero verbalizado com vulgar vocabulário, que se esmera em requintes que jamais farão parte da sua proletarizada existência.
Há aquilo que você jamais alcançará por ter nascido no eco das diferenças. E mesmo que enxergue nelas a possibilidade de enriquecer seu espírito, de aprender o novo, são as diferenças que o manterão inerte.
Oco.
Desimportante.
Dane-se que você tem planos - exceto o de saúde - e a habilidade de transformar pequenas tragédias em prováveis oportunidades. A pequenez dos seus dramas, a legitimidade rasa impressa em seu R.G., os cursos diversos que só servem para qualificá-lo para as vielas profissionais, nada disso nos importa.
Dane-se você, meu caro, que em nada contribuiria se saísse da sua função de engrenagem para as nossas conquistas. Um pedacinho de nada que só funciona grudado aos outros suados pedacinhos de nada, criando esse tudo que permite sermos os detentores do poder, da luxúria deleitável que é decidir por você e pelos que o acompanham nessa jornada de infortúnios que é ser quem permitimos que seja.
Um brinde ao poder que você almeja e nunca alcançará, no qual não cabe o distúrbio insalubre de considerar o outro, a ponto de cuidá-lo como, diria algum filósofo de botequim incoerente, ele fosse pessoa.
Não era e nunca se tornará pessoa.
Você não é pessoa, mas sim aquela engrenagem que responde ao que lhe oferecemos. Há dias em que lhe damos nada, como o nada que você representa. Gostamos de vê-lo lamber os beiços com esse nada que você confunde com menos do que merece, mas ainda assim aceita, porque tem de seguir em frente. Há dias em que você até nos agradece.
Enfim, dane-se você que depende de nós para existir. Dane-se as suas necessidades, que, erroneamente, você acredita que devemos suprir.
Dane-se, meu caro.
Imagem © Magnus Zeller
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