RATOS - 1a parte >> Zoraya Cesar
Se eu quero, eu pego. Se tentam me impedir, eu tiro do caminho. E se me aborrecem, eu me vingo. Minha vida é simples.
Nunca fui bonito – nasci pequeno, franzino, parecendo um rato cinzento e comprido. E por ter nascido sem os dons da beleza ou empatia, lancei mão da malícia para conseguir meus intentos. Mentira. Usei de malevolência porque eu gosto. E gosto não se discute.
Nas fotos de família lá estava eu - meio escondido atrás de alguma saia ou perna de calça, apenas minha cabeça aparecia, o cabelo ralo, os olhos brilhantes, fundos e esbugalhados, o nariz afunilado. Minha boca era pequena, mas os lábios, carnudos, me conferiam um ar de sátiro lúbrico e insaciável.
O Rattus norvegicus, a ratazana de esgoto, ou está comendo ou fazendo sexo. Pode chegar a ter 20 relações por dia.
Alguns acreditam que a aparência espelha o caráter. Outros, que, ao contrário, ela influencia em sua formação. Não sei quem está certo, nem mesmo se estão certos. O que sei é que admiro a solércia, a inteligência, o esganamento de ratos e ratazanas. E nunca me incomodei em ser comparado a esses seres, em minha aparência e – digo logo, para poupar tempo – conduta.
Tenho uma raiva que me consome, uma inveja perene que me leva a destruir tudo o que está ao meu alcance. E não tenho escrúpulos ou preconceitos. É-me indiferente que o objeto de minha inveja seja pessoa da família, vizinho, empregado, desconhecido.
Noventa e cinco por cento do código genético dos ratos é igual ao dos humanos.
Meu avô foi o primeiro a suspeitar de minha natureza murina. Desconfiou de minhas manobras para disseminar a discórdia na família; de ter sido minha a mão que escreveu a carta anônima que levou minha prima ao suicídio; e de que fora eu a roubar o broche de minha avó, forjando a culpa sobre minha cunhada. Sim, meu avô, com seu tino de homem honestíssimo, sentia que eu, seu neto mais velho, era um verme, ou melhor, um roedor abjeto. Mas nunca pôde provar nada. Antes que conseguisse fundamentar suas suspeitas e desnudar minha alma à luz do sol, troquei os remédios que ele tomava, provocando sua morte. Um lamentável acidente, concluiu o médico. Um golpe de mestre, pensei eu.
A vila onde nasci, sendo pequena e interiorana, era habitada por gente conservadora e ciosa de sua honra. Todos hipócritas, claro.
O tabelião, por exemplo, passava a mão na bunda das empregadas e fazia discursos em praça pública pela moralidade dos costumes nos lares. A diretora da escola, por sua vez, roubava dinheiro das auxiliares e depois o distribuía nas quermesses da igreja, para se fazer de generosa. Mas de seu bolso, mesmo, nunca saiu um centavo.
E essa gente – quase tão execrável quanto eu – murmurava sobre meus hábitos escusos e furtivos, pois eu não gostava de sair durante o dia e minha pele tinha sempre um estranho palor; que eu podia enxergar no escuro e andar sem ser percebido. Que eu era esquisito. Essa gente fala muito.
Os ratos são animais de
hábitos noturnos.
Enxergo bem, verdade, e, sendo magro e flexível, esgueirava-me com facilidade por entre as sombras (quantos segredos descobri, quantos valores roubei, quantas desavenças provoquei por conta disso!) E, justamente por temer ser pego de surpresa ouvindo ou perscrutando sobre a vida alheia, andava sobressaltado, a olhar por trás dos ombros. Vou, no entanto, confessar, pois é só o que me resta a essa altura: eu tinha, realmente, características, hábitos e pensamentos estranhos para aquela gente simplória e maldita.
Ratos são habilíssimos para se localizar, aprender caminhos novos e criar atalhos. Sua noção espacial é incomparavelmente mais evoluída que a do reles Homo sapiens.
Naturalmente, aos poucos as pessoas foram juntando os pontos, coligindo coincidências – como é lento o ser humano em aceitar a maldade por si mesma, justificada pelo simples desejo de realizá-la, e não, necessariamente, porque ela vá trazer algum benefício ou vantagem ao seu perpetrador.
Quando, finalmente, familiares e vilãos se deram conta – embora nunca tenham provado nada; era mais uma certeza íntima - da intriga, roubos, maledicência, enfim, de todo prejuízo e destruição que eu provocara, vi-me obrigado a me afastar de seu convívio.
Como se isso me afetasse!
A casa estava abandonada. Seu antigo habitante desaparecera, simplesmente. Eu bem desconfiava o que lhe acontecera. Fiz uma pequena reforme e me mudei para lá. Era o lugar perfeito para meus planos. |
Fui morar numa casa velha, afastada o suficiente para que eu tivesse sossego e pudesse viver em paz com os seres mais inteligentes do planeta: ratos e ratazanas.
Ratazanas podem ser domesticadas. Se retornam à vida selvagem, no entanto, adaptam-se rapidamente à liberdade.
Comecei, então, a pôr em prática o sonho que acalentei desde sempre: ser maior que o Flautista de Hamelin. Eu não ia somente encantar os ratos. Eu iria domesticá-los. E, em os domesticando, colocá-los a meu serviço. Um serviço já inteiramente planejado.
2a parte em 26 de janeiro
foto: StockSnap on Pixabay
Comentários
O que me preocupa é o grau de detalhamento sobre a vida dos ratos e ratazanas.
Quanto interesse sobre algo tão repugnante!
Para começar, já morreram uns 3 ou 4!
Mas ratos tem o seu ponto fraco e são "seduzidos" por gatos, que os devoram sem problemas.
Quanto a sexo, a única menção foi que ratos "trepam" até 20 vezes por dia, o que vai deixar muita ninfomaníaca humana interessada hahaha...
Vamos aguardar a segunda parte, para ver o que vai acontecer com esse ser abjeto!
Ótima reflexão sobre comportamentos dos humanos e dos ratos,tendo em vista que,
cientificamente,homens e ratos têm genes semelhantes...e em números próximos,com.aoenas trezentos genes de diferença!
Que venha a segunda parte !
Parabéns!
Também eu tenho medo de ratos. Humanos ou não. E o final da história só nos dá razão...