ACORDEI MEIO ESTRANHO HOJE >> Sergio Geia
Vez em quando fico
assim como estou hoje, paralisado, olhando o nada. Talvez não seja um “olhando
o nada”, mas certo alheamento, um distanciamento das coisas, espécie de transe,
sabe?, desligamento da vida. Você deixa de ser um ser ocupando espaço, não há
espaços para ocupar nesse desligar, não tá tempo, não há ruídos (nem o canto do
passarinho, do bem-te-vi eu ouço), não há nada. Talvez se assemelhe a uma
espécie de meditação, natural, sem forçar, sem buscar.
Desligar que acontece
principalmente quando estou sem inspiração, e preciso escrever. Um dia pensei:
não me faltará inspiração, sempre terei assunto. Engano. Sofro desse mal hoje, que chega a doer. Então
saio à cata de coisas, de fatos, de uma notícia, um sorriso ou uma borboleta
voando, umas pedras no caminho, um casal namorando, pagode no bar da esquina,
um piar. Quando vejo, não existo (ou pelo menos não existia até que vi), não
ocupo espaços, não há tempo, me desligo. Aciono o botão e volto. Aí levanto,
bebo um café na cozinha, vou à estante, olho lombadas, Clarice, Caio, Prata,
Braga (essa estirpe de cronistas), até penso em abrir um deles, mas não abro.
Chego até a sacada, observo a mangueira com frutos já maduros, um senhor
caminhando na Santa Teresinha, a manhã triste de chuva fina, depois volto,
sento, pego o notebook, tento encontrar alguma coisa.
Nesse processo,
digamos, criativo, que depois de anos ouso dizer que conheço (mas que às vezes
de criativo não tem nada), não adianta sentar na frente do computador e tentar
escrever sem nenhum esboço ou ideia. Francisco de Assis, por exemplo, meu
santinho favorito. Desde os tempos de menino, desde “Irmão Sol, Irmã Lua”, desde
“O Irmão de Assis” de Inácio Larrañaga, desde a opereta “Irmã Clara e Pai
Francisco”, que alguns amigos encenavam, e que cantavam num dado momento:
“Francisco ficou biruta, Francisco ficou lelé, da cuca, da cuca, da cuca” — a
melodia nunca se deixou de mim.
Francisco sempre me
vem à mente quando estou sem inspiração. Isso porque tenho uma vontade louca de
me encontrar com ele num texto. Francisco está nas minhas orações, me é
importante, quero falar dele, preciso. Mas Francisco vem sozinho, o pobrezinho
de Assis, humilde, sem roupas, desnudo das riquezas do mundo, como sempre foi.
Ainda que com sua força monumental, sua fé inabalável que dobrou até joelho de
Papa, sem uma mínima ideia, não vai, nem Francisco, nem a pau.
Hoje, por exemplo,
acordei meio estranho (nada objetivo, apenas uma estranheza esquisita). Era dia
de caminhada, de tomar café na rua, mas com a chuva desisti. Tomei café aqui
mesmo, liguei o computador, fiquei olhando a tela, depois a chuva, as pessoas,
as rotinas, fiquei pensando, como não me veio nada, Francisco chegou.
Sabe que sonho
conhecer Assis? Quando você faz a experiência, quando você mergulha num oceano
de fé e amor, conhecer Assis passa a ser obrigação. É pisar a terra onde seus
pés pisaram, respirar o ar que preencheu seus pulmões, receber a brisa que o
acarinhou (quem dirá que não é a mesma?), sentir sua vida através da vida de
Assis. Bobagem? Você pode pensar: “Assis hoje é outra, nada a ver com aquela de
1220”. Talvez você tenha razão, talvez a riqueza que ele tanto abominou seja o
combustível queimando hoje na cidadezinha turística, mas não importa.
Às vezes me relaciono
com memórias, coisas boas, outras, nem tanto. Forte em mim, por isso fácil de
acessar, é a sensação de que um dos melhores momentos da minha vida — e isso
aconteceu lá atrás —, em que me senti pleno, numa perfeita harmonia comigo, com
os outros, com a vida, cheio de tesão, confiança, alegria, força, com
disposição para dar e praticar o amor, foi quando entrei num processo de
mergulho na vida do pequenino de Assis. Lá, aprendi que a felicidade é uma
coisa fácil de encontrar.
Hoje acordei meio
estranho. Ainda estando assim (uma dor no peito me dá agonia), estou feliz,
pois Francisco está aqui, sinto, como também sinto um clarão daquela
experiência.
Merece uma comemoração.
Quem sabe um
recomeço?
Dosinha de uísque no
copo.
Viva!
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