CENA PARA SEMPRE >> Fernanda Pinho
Todas as lembranças que tenho da minha infância são feitas de flashes de momentos que me marcaram. É como se minha memória fosse um álbum onde coleciono essas cenas. Talvez seja assim com todos. Não sei. A cena que vou narrar agora é, sem dúvidas, uma das imagens maiores e mais nítidas desse meu álbum tamanho o impacto dela em minha vida.
Era domingo. Eu, com dez anos, minha irmã, com cinco. Nós duas e minha mãe estávamos chegando da igreja. Minha irmã e eu vestidas de anjo. Era maio e, como era tradição entre as meninas do bairro, havíamos participado da coroação à imagem de Nossa Senhora. Eu estava feliz e orgulhosa pois, depois de anos sendo um anjo-figurante, havia, finalmente, chegado ao topo da minha carreira angelical: coloquei a coroa na imagem. Ao pisarmos no portão de casa, voamos (quase literalmente) ao encontro do meu pai para lhe contar sobre nossa divina atuação na igreja. Ele estava sentado à mesa de ardósia, a cabeça entre as mãos. Chamamos por ele e recebemos em troca um olhar diferente. Para mim, era um olhar novo. Mesmo assim, eu sabia, havia dor ali. "O que aconteceu?", minha mãe se apressou em perguntar em busca de uma resposta que espantasse o mau presságio que aquele olhar trazia. Certamente ela temia que meu pai tivesse uma má notícia para nos dar. Uma morte na nossa família, talvez. Não era isso. Não era bem isso. Mas, nem de longe, a notícia dada nos aliviou. Ele apenas confirmou o que temíamos. Havia acontecido uma tragédia. Acostumado a falar sempre em voz alta, meu pai quase murmurou: "O Senna morreu".
Ele deve ter explicado à minha mãe sobre como tudo aconteceu. Mas dessa parte já não me lembro mais. A cena seguinte que tenho em minha memória sou eu, sentada na mesma mesa de ardósia, vestida de anjo, aos prantos. Me lembro também de pegar uma revista Caras que, meses antes, havia publicado várias fotos do Senna com a namorada, Adriane Galisteu, e ficar olhando aquelas fotos. Incrédula. Eu era apenas uma menina de dez e nada entendia de Fórmula 1. E, mesmo hoje, sendo uma mulher de 27, continuo sem entender. Mas tem certas que coisas que só precisamos sentir. E eu sentia uma imensa alegria a cada vez que o Senna erguia a bandeira do Brasil no pódio. Por isso, pela primeira vez na vida, eu me sentia inconformada e indignada diante da morte.
Dezesseis anos depois, essa sequência de memórias voltou à tona com riqueza de detalhes, enquanto eu assistia ao documentário Senna, que está em cartaz há algumas semanas. Chorei copiosamente no cinema, como a menina vestida de anjo, na mesa de ardósia. Mas, dessa vez, não era só tristeza, inconformismo e indignação. Era também orgulho por lembrar que houve um tempo em que existia um brasileiro que lutava pelos seus valores e pelas suas convicções sem sucumbir à politicagem das escuderias. Senti também uma vontade - e por que não dizer: coragem - de ir atrás das coisas que eu sonho pra mim. Porque ele acreditou no seu sonho e motivou os brasileiros a acreditarem cada um no seu. Porque ele era Senna, mas também era da Silva. E, claro, não consegui evitar a apreensão, à medida que o filme transcorria e nos aproximávamos do fatídico 1994. Um desejo onírico de fazer o filme parar, de voltar a fita, de ir lá e dizer: "Precisa correr mais não, Senna. O Brasil já está satisfeito". Mas o filme era da vida real e a vida real, como já se sabe, tem dessas coisas.
Todas as formas com que este filme e este homem me marcaram - e, claro, a milhares de pessoas no mundo todo - podem ser resumidas em uma frase do documentário, dita por uma mulher, durante o funeral de Senna: "Um país precisa de educação, saúde e um pouco de alegria. O Brasil tinha um pouco de alegria. Agora nós perdemos". Senna para sempre.
http://www.blogdaferdi.blogspot.com/
Comentários
Acho que vc falou o que está guardado em nossos corações, em nossa memória há tanto tempo, desde aquela curva fatídica, no dia do trabalhador!
Eu era um pouco mais velha que vc, tinha 13 anos e assistia a corrida. Pra mim era um ritual familiar ver a corrida! Depois desse dia nunca mais vi, nunca mais torci...mal consigo ouvir o barulho dos carros que me enjoa!
Quero muito ver esse filme, mas já vou sem make-up porque sei que vou chorar feito criança! De novo!