TERAPIA >> Albir José Inácio da Silva
Tédio. A vida estava um tédio. O que seria normal para a maioria dos humanos, mas não pra ele. Para Miltinho a vida tinha de ter alegria, sempre. Outro se daria por satisfeito: bom emprego, bons parentes, bons amigos. Tudo bom, tudo igual. Tudo igual.
Do jornal não esperava mesmo novidades. Crimes, desastres, política, corrupção. Os mesmos filmes, classificados, programas, garotas de programa. Tudo igual. Mas o que é isso? “RAINHA CATRINA VENHA SER MEU ESCRAVO E VIVA SEUS FETICHES MAIS OCULTOS LIGUE AGORA OBEDEÇA-ME”.
Ela o recebeu de cara feia, mas devia ser parte do jogo.
- O que você gosta?
- Fica por sua conta. Surpreenda-me. - respondeu ele com um risinho.
Tudo certo então. Pagamento adiantado, tire a roupa, espere de joelhos. Sentiu-se meio ridículo, mas ia participar. Sem ousadia não se muda nada.
Ela voltou em rendas e botas pretas. Uma corda amarrou firmemente os tornozelos e, outra, os pulsos atrás das costas de Miltinho. Uma terceira juntou quanto pôde os cotovelos. Não estava confortável, mas conservava ainda o sorriso de “que será que esta danadinha vai fazer?”
Miltinho se espantou com o barulho do lado esquerdo do rosto. Ia protestar mas a mão explodiu do outro lado, dessa vez fechada. Sua expressão era ainda de surpresa. Não queria mais brincar: chega! Pagou e não estava gostando. Podia desamarrá-lo e ficar com o dinheiro. Ia embora, pensou, mas não chegou a falar.
- Quem é sua rainha? Quem é sua senhora? - ela grita, mas não lhe dá tempo - Ah, você não quer falar. Pois agora não vai falar mais.
Uma bola é pressionada contra sua boca e ele trata de abrir para evitar que os lábios se rompam. A corda que passava pela bola é amarrada atrás da cabeça. Agora só emite sons pelo nariz. Uma bota atinge de bico suas costelas e ele cai de lado, no carpete sujo, gasto e cheio de grãos de areia. Novos golpes, enquanto está ganindo em posição fetal. Não consegue respirar e sente gosto de sangue.
Agora ela tem um chicote que trabalha incansavelmente o corpo moído que se mexe como uma minhoca tentando fugir dos golpes. É xingado de coisas que nunca ouviu nem da torcida adversária.
A corda que prende a bola na boca é desamarrada, mas uma venda é colocada nos seus olhos, ao mesmo tempo em que ouve a voz cínica, mas agora suave;
- Por misericórdia sua rainha vai aplacar sua sede.
Um jato quente, ácido e salgado lhe entra pelas narinas e um tapa estala no rosto molhado.
- Abre a boca. Não desperdice uma gota!
Ele engole, engasga, tosse e desperdiça. A senhora, é claro, não perdoa. Ele acha que vai morrer com os chutes, gritos e... uma campainha. Ouve uma campainha.
- Seu tempo acabou.
Salvo pelo relógio. Sua rainha não concederia um único tapa depois do tempo. Ela o desamarrou e apontou o banheiro. Quando saiu foi recebido com um sorriso meigo e um cartão. Catrina se despediu com dois beijinhos, como uma velha amiga.
- Aí tem meu celular. Pode ligar a qualquer hora.
No elevador, Miltinho fica emocionado com a gentileza do ascensorista. Nunca tinha reparado em ascensoristas. Na rua, acompanha as crianças com olhar cheio de ternura. Enche os pulmões com o cheiro das árvores que, por incrível que pareça, sempre estiveram ali. O dia está nublado, mas ele nunca viu tantas cores. Vai redescobrindo cada rosto, cada fachada, cada loja. Suspira.
Quando eu era criança, ouvi várias vezes uma história. Um homem batia na própria canela com um pedaço de pau e depois caía no chão gemendo. Algum tempo depois repetia esse gesto, para espanto de todos. Quando lhe perguntaram por que fazia isso, se não doía, ele respondeu: “dói, dói muito. Mas quando para é tão bom!”
Pois é, leitor, às vezes precisa piorar pra ficar bom. Miltinho, que eu saiba, está bem. Mas é claro que as recaídas são sempre possíveis em terapia. Acho que é por isso que ele conserva aquele cartão.
Você não está entediado, está?
Do jornal não esperava mesmo novidades. Crimes, desastres, política, corrupção. Os mesmos filmes, classificados, programas, garotas de programa. Tudo igual. Mas o que é isso? “RAINHA CATRINA VENHA SER MEU ESCRAVO E VIVA SEUS FETICHES MAIS OCULTOS LIGUE AGORA OBEDEÇA-ME”.
Ela o recebeu de cara feia, mas devia ser parte do jogo.
- O que você gosta?
- Fica por sua conta. Surpreenda-me. - respondeu ele com um risinho.
Tudo certo então. Pagamento adiantado, tire a roupa, espere de joelhos. Sentiu-se meio ridículo, mas ia participar. Sem ousadia não se muda nada.
Ela voltou em rendas e botas pretas. Uma corda amarrou firmemente os tornozelos e, outra, os pulsos atrás das costas de Miltinho. Uma terceira juntou quanto pôde os cotovelos. Não estava confortável, mas conservava ainda o sorriso de “que será que esta danadinha vai fazer?”
Miltinho se espantou com o barulho do lado esquerdo do rosto. Ia protestar mas a mão explodiu do outro lado, dessa vez fechada. Sua expressão era ainda de surpresa. Não queria mais brincar: chega! Pagou e não estava gostando. Podia desamarrá-lo e ficar com o dinheiro. Ia embora, pensou, mas não chegou a falar.
- Quem é sua rainha? Quem é sua senhora? - ela grita, mas não lhe dá tempo - Ah, você não quer falar. Pois agora não vai falar mais.
Uma bola é pressionada contra sua boca e ele trata de abrir para evitar que os lábios se rompam. A corda que passava pela bola é amarrada atrás da cabeça. Agora só emite sons pelo nariz. Uma bota atinge de bico suas costelas e ele cai de lado, no carpete sujo, gasto e cheio de grãos de areia. Novos golpes, enquanto está ganindo em posição fetal. Não consegue respirar e sente gosto de sangue.
Agora ela tem um chicote que trabalha incansavelmente o corpo moído que se mexe como uma minhoca tentando fugir dos golpes. É xingado de coisas que nunca ouviu nem da torcida adversária.
A corda que prende a bola na boca é desamarrada, mas uma venda é colocada nos seus olhos, ao mesmo tempo em que ouve a voz cínica, mas agora suave;
- Por misericórdia sua rainha vai aplacar sua sede.
Um jato quente, ácido e salgado lhe entra pelas narinas e um tapa estala no rosto molhado.
- Abre a boca. Não desperdice uma gota!
Ele engole, engasga, tosse e desperdiça. A senhora, é claro, não perdoa. Ele acha que vai morrer com os chutes, gritos e... uma campainha. Ouve uma campainha.
- Seu tempo acabou.
Salvo pelo relógio. Sua rainha não concederia um único tapa depois do tempo. Ela o desamarrou e apontou o banheiro. Quando saiu foi recebido com um sorriso meigo e um cartão. Catrina se despediu com dois beijinhos, como uma velha amiga.
- Aí tem meu celular. Pode ligar a qualquer hora.
No elevador, Miltinho fica emocionado com a gentileza do ascensorista. Nunca tinha reparado em ascensoristas. Na rua, acompanha as crianças com olhar cheio de ternura. Enche os pulmões com o cheiro das árvores que, por incrível que pareça, sempre estiveram ali. O dia está nublado, mas ele nunca viu tantas cores. Vai redescobrindo cada rosto, cada fachada, cada loja. Suspira.
Quando eu era criança, ouvi várias vezes uma história. Um homem batia na própria canela com um pedaço de pau e depois caía no chão gemendo. Algum tempo depois repetia esse gesto, para espanto de todos. Quando lhe perguntaram por que fazia isso, se não doía, ele respondeu: “dói, dói muito. Mas quando para é tão bom!”
Pois é, leitor, às vezes precisa piorar pra ficar bom. Miltinho, que eu saiba, está bem. Mas é claro que as recaídas são sempre possíveis em terapia. Acho que é por isso que ele conserva aquele cartão.
Você não está entediado, está?
Comentários
Nossa, Albir! Nunca tinha visto o masoquismo com esses olhos! Perfeito o seu texto, perfeita a descrição das sensações do Miltinho quando saiu do encontro com a Madame.
Beijos.
Beijo!
É tão bom ter você por aqui novamente! Beijos.
Rachel, que saudade!
Beijos pra você, Cláudia Letti e todos na Terapia da Palavra.