NAS ALTURAS >> Ana Raja


Olhando pela janela do sexto andar, me sinto confortável na minha bolha-lar. Aqui, nas alturas, observando as folhas das árvores trazidas pelo vento — quase consigo tocá-las —sonhando com dias de bom agouro, e posso elaborar planos, emoldurar os resultados e me aninhar em braços de quem me ama. Virginia Woolf dizia: “uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, se ela quiser escrever ficção”.

Da minha bolha, vejo todos os dias, na realidade da rua, uma mulher jovem com o seu filho de mais ou menos dois anos. Um pouco de sol, brinquedos e uma curta caminhada é a rotina na agenda dessa mãe. Ela mora no primeiro andar, perto do chão, com os pés mais na terra do que eu, habitante do último, com a cabeça nas nuvens. 

Será que somos tão diferentes?

Os pássaros me contaram que ela se dedica exclusivamente à casa. Como observadora das alturas, acredito ser exaustiva essa rotina. Ao escolher se doar dessa forma, de alguma coisa a mulher abriu mão. Escolhas e consequências? Minha cabeça nas nuvens elabora a resposta: às vezes, escolhemos o caminho sem termos ideia de como serão as consequências.

Ela deve sentir mais frio do que a maioria. Muitos panos sempre cobrindo seu corpo. Não transita sem amarras. Não vejo com clareza a expressão do seu rosto. Um meio sorriso ou um sorriso farto? Um brilho nos olhos ou um olhar voltado ao passado?

E quando ela olha para cima, o que pensa ao me ver? Que estou presa, que os meus passos não moram perto do chão como os dela? Sente alguma piedade ao imaginar a minha rotina de escrita? Sim, ela sabe que eu escrevo. 

Da janela voam histórias criadas na minha cabeça, brotadas na sala de estar do andar mais alto.

Será que somos tão parecidas?

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As dores delas, primeiro livro de Ana Raja, está a venda no www.editoraurutau.com.

anaraja.com.br

Comentários

Elaine da Mata disse…
Que delícia poder ler uma crônica sua minha amiga. Quanta delicadeza e quanta percepção. Perfeito!
Zoraya Cesar disse…
Tão diferentes e tão parecidas, cada uma dando graças por não ser a outra, cada uma invejando ser a outra e somos todos fragmentos mal colados. Bela reflexão, como sempre, Ana! escrita com delicadeza e amor.
Anônimo disse…
Quanta delicadeza e sensibilidade para falar da vida, das escolhas e suas consequências. Soraya
Nadia Coldebella disse…
Que crônica singela! Essa sororidade dos seus textos enche meu coração.

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