SE ELE SOUBESSE COMO... >> Carla Dias >>
Talvez não houvesse tanto cansaço, daqueles que atrasam tudo. De, então, protelar o sair da cama e encarar realidade. De protelar demais da conta e o dia passar.
Bem provável que visitaria quintais. Extinção de quintais é subtítulo para especulação imobiliária. Ele desdenha, com um esgar dissonante e um respirar profundo, digno de final triste de filme ruim.
Se ainda não se deu conta, sou eu, a narradora intrometida.
É que montam playground e instalam grama sintética, “perfeita para fazer decoração durar mais”. E ele olha e não enxerga a beleza dessa duração. Não entende isso de concretar o que já estava ali, disponível, útil, necessário e vivo.
Cuidar dá trabalho. Quem ainda não entendeu isso? E este é o tipo de laboração que compensa em deslumbramento.
Ninguém vive sem quintais. Se falta no seu lugar, corra para a casa de alguém que o tenha, onde o sol o alcance, ele tão determinado a conseguir que os prédios recolham a sombra que insistem em deitar sobre os telhados das casas de quatro cômodos, acomodadas em vilas repletas de história.
Ah, e a pele...
Há tempos não sentia a existência do sol na pele. Fica ali, a cara virada para o céu, em um espaço tão pequeno, que ele se esforça para não se mexer, porque não quer perder o calor. Como faz falta o toque do sol, do vento, da chuva, o perfume do que ainda é vivo, brota e depois morre, vira adubo.
Pensa, timidamente, porque ainda teme a morte, que será um adubo dos bons para essa grama toda enterrada sob a sintética, que engana crianças sobre o significado da maciez, roçando, arisca, os pés delas. Dizendo que é algo bom, agradável, ainda que seja palco para playgrounds e perfeições dispensáveis.
Mas ele entende: todas as perfeições são dispensáveis. Quem compreende isso é porque sabe que a vida acomoda, muda, movimenta, providencia para que a perfeição – especialmente aquela nos moldes da grama sintética – não seja apenas uma palavra bonita para disfarçar imperfeições.
Ele aprecia imperfeições, não as disfarça ou pede que o façam.
Eu o aprecio por suas perfeitas imperfeições.
Pensa em como seria a sua vida, não o tivessem extirpado do seu lugar, depois de nocautearem a sua sanidade mental, apenas para isso... um pedaço de algo morto, que vai durar, mas e daí? O que adianta durar, mas oferecer nada além de estabilidade, e não das que amparam. Sim, das que desolam.
Já deu para entender que ele não se refere apenas à grama sintética do playground onde o neto brinca, rastejando em verdejantes invencionices, enquanto a nora proíbe que a criança conheça a grama que é grama. Porque ele ainda tem um quintal e se esforça para que ele sobreviva aos trinta e cinco andares à direita, trinta andares à esquerda. Aos miúdos de vinte andares à frente e vinte e cinco, atrás.
Especulação imobiliária engole quintais. Disse isso a alguém que riu, enquanto lançava a ele o seu mais desdenhoso olhar. Onde já se viu maldizer o crescimento necessário? Mas pense bem, ele não maldisse o crescimento necessário, mas sim aquele que extermina quintais de casas, cidades, países. Aqueles que lançam sombra pelas avenidas e engolem vilas repletas de histórias e importâncias.
O neto gosta dos cabelos brancos do avô. Vive a brincar com as madeixas, dizendo que parecem vindas do céu. Eles brincam, debaixo de um grande teto que imita o céu que a criança só enxerga pela janela do carro, quando sai de casa para ir à escola. A escola também tem teto no pátio, “segurança, item indispensável”.
Quando foi que começaram a se proteger da vida que não é paisagem na reprodução? Era arte, antes de se tornar saudade. Passaram tanto tempo apreciando o registrado, esqueceram-se que a tinham ali: o quintal de fora a fora do que hoje é passado.
Ele abraça o menino, todo miúdo nesse abraço. O sol já não os alcança mais, ali, em um pedaço contido da área de serviço do apartamento. Conta a ele sobre um quintal imenso, repleto de vida, pulsando matas, rios, onde os animais se embrenhavam, as flores explodiam de tanta alegria, as árvores se tocavam em galhos. O menino diz que já ouviu falar a respeito. O avô se ressente, chora por dentro, enquanto sorri de disfarce.
Seu menino nunca conhecerá o que não é reprodução.
Essa narradora aqui não é dada ao choro, mas todos e tudo têm limite. Pudesse mostrar ao menino o que avô gostaria que ele conhecesse, eu o faria. Mas não sou autora... sou apenas uma narradora intrometida, das que sofrem no final de realidade ruim.
Feito agora...
Se ele soubesse como, guardaria um pedaço do mundo para o neto conhecer. Pararia com as especulações e o pouco caso, ajudaria as pessoas a compreender que, na verdade, elas não moram em uma caixa de concreto, cercadas pelo o que as faz se sentirem seguras e confortáveis. É muito mais do que aquela linda imagem de fundo de tela de computador.
Todas as noites, antes de dormir, ele se desculpa por não ser capaz de impedir que o mundo seja subjugado pelo desejo infindável do homem de ocupar todos os espaços com seus grandes projetos atrelados às mentiras, à ganância, ao desrespeito coordenador de especulações que geram riquezas que não prezam por aquelas que de fato nos sustentam.
Riquezas naturais, lembra?
Perdeu a noção de há quanto tempo não enxerga a lua. Como sente saudade dela. Fecha os olhos e se rende à lembrança: abre a porta que dá para o quintal e o invadem os perfumes e o cenário de vida que é vida, de fato. Um pequeno tesouro em um quintal de uma vida, resumido em uma lembrança que ele não permite que desapareça.
E eu, narradora que sou, embarco nesse sonho que aconteceu de ter sido realidade.
Imagem: Quintal da Dona Alzira, fotografado pela própria.
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