Confissões de quarentena - Pijama, louças e omelete >>> Nádia Coldebella
Tínhamos pequenas brigas, como todo casal, mas a quarentena cavou um fosso entre a gente.
Logo no começo, pedi para ela que comprasse outro pijama. Não suportava vê-la com aquela roupa. Ela achou que eu estava brincando. Fui ficando diariamente mais sarcástico e um dia explodi:
- Joga essa roupa odiosa no lixo!
Vi quão profundamente a tinha atingido quando ela, com voz esganiçada, quase chorando, disse:
- Mas minha irmã trouxe para mim de Paris!
- Foda-se! - Eu disse, insanamente.
Ela ficou muito brava, nunca a vi daquela maneira:
- Foda-se você, imbecil. Eu pelo menos tiro meu pijama durante o dia.
Certo. Eu ficava o dia inteiro de pijama. Resolvi ser arrogante.
- E daí?
Ela enlouqueceu. Acho que a gritaria chamou a atenção do prédio todo.
- Você acha que que meu pijama é odioso? Porque não olha pra a sua cara?
E ela olhou para a minha cara, eu fiquei meio sem jeito.
Dei uma olhada furtiva no espelho e pude ver um rosto todo amassado. Fiquei com vergonha e voltei a encará-la. Aí ficamos em silêncio, um olhando para a cara do outro, os dois de pijama.
Caímos na gargalhada e na cama.
Isso me deu certeza de que nossa relação poderia superar qualquer coisa.
Aí veio o dia da louça.
Ela disse, um dia, que se sentia uma escrava da quarentena.
- Eu acordo, faço café, lavo louça, lavo roupa, passo roupa, limpo seu sapato com álcool em gel, lavo louça de novo, faço almoço, lavo louça, trabalho, lavo louça. E você fica aí, jogando.
- A máquina é que lava a roupa. E eu estou trabalhando. - naquela hora eu estava realmente.
Ela ficou quieta, achei que estava tudo resolvido.
Dias depois comecei a perceber que minhas meias sumiam e que não tinha mais cuecas e toalhas de banho. Os pratos tinham acabado também. Assim como as panelas e os talheres. Nada nos armários. Achei estranho, porque ela sempre tinha um prato limpo, ou uma panela limpa, as meias dela estavam na gaveta e as calcinhas também.
- Amor, cadê minhas cuecas?
- Ué? Pede pra máquina lavar.
Aí foi que olhei pra pia da cozinha e vi a montanha de louça que eu havia usado. Coloquei uma cueca suja mesmo, uma máscara e saí de casa. Entrei na primeira loja. Voltei com uma máquina de lavar-louça. Ela me olhou com um olho muito esquisito.
- Quando eu lavava louça, você nunca topou em comprar uma máquina dessas. - Tinha muita amargura na vós dela.
Fingi que não ouvi, fiquei um pouco envergonhado, mas resolvi colocar logo a louça na máquina para ver se amenizava a crise na relação.
Naquela noite, não caímos na cama. Ela dormiu no sofá e eu fiquei até tarde na lavanderia desencardindo minhas meias e lavando minhas cuecas.
Os dias foram passando e ela foi conquistada pela lava-louças.
Suspirei aliviado. Sim, podíamos superar qualquer coisa. Fiz essa autoafirmação bastante motivado, mas já não estava tão certo da verdade de minhas palavras.
Então veio a omelete.
Depois de uma longa análise e discussão acerca dos prós e contras de nossas atitudes, a popular DR, fizemos as pazes e resolvemos comemorar com uma omelete. Nós dois adorávamos ovos e isso realmente nos unia. Como já não havia a discussão acerca de quem lavaria a louça, resolvemos cozinhar juntos.
- Que bom. - Ela parecia animada. - Eu vou bater os ovos.
- E eu pico a cebola.
- Amor, vamos fazer uma omelete sem cebolas. Podemos colocar manteiga.
Eu fiquei zangado.
- O que manteiga tem haver com cebola? Eu quero cebola.
- Então tá. - E fechou a cara.
- Vamos por alho?
Ela não respondeu. Eu piquei o alho.
- Eu quero brócolis.- A vos dela era ameaçadora, mas não me deixei intimidar.
- Quem é que coloca brócolis numa omelete? Você tem noção de como isso é idiota?
Ela não disse nada. Colocou as coisas na frigideira e soltou:
- Essa cebola está grossa demais.
- Deixa assim. Se você não quer fazer, não faz.
Então ela largou tudo lá e foi pro banheiro. Escutei o chuveiro ligando e ela ficou lá um longo tempo. Bem longo mesmo. Não comeu a omelete. Aí eu lembrei que cebola fazia mal pra ela. Ela sentia muita azia.
No outro dia, ela acordou e me olhou de um jeito estranho. Não disse nada. Fez uma pequena mala e colocou a máscara.
- Eu vou embora. Não suporto mais viver assim.
Eu entrei em pânico, não entendi nada. Ajoelhei, chorei, implorei, pedi perdão.
- Não vai. O que vou fazer sem você? A gente resolve isso.
Ela simplesmente me ignorou, virou as costas e foi embora.
Não falou mais comigo. Mudou de estado, achou outro trabalho e outros amigos. A irmã dela mandou um whatsapp pra mim, perguntando o que tinha acontecido. Disse que nunca a vira tão feliz. Faz um mês, doze dias e vinte e duas horas que ela se foi e desde então acordo e durmo chorando. Ela já reconstruiu toda a vida e eu pareço ter sido apenas um contratempo num tempo paralelo da existência dessa mulher.
Hoje pela manhã, porém, uma luz se acendeu.
- Oi, sou eu. - Era ela quem me ligava.
- Você tem outra pessoa? - Pedi, desesperado. Ela bufou do outro lado, parecia brava. Estraguei tudo.
- Não. Não quero ninguém por um bom tempo. Estou feliz assim.
- Você não quer voltar? - Eu já chorava convulsivamente.
- Não, eu quero o divórcio e o meu pijama.
- Você esqueceu o pijama? Não vê que isso é um sinal? - Agora eu estava esperançoso.
- Perdeu o juízo? Esqueci porque queria sair logo de perto de você.
Não havia jeito. Ela estava irredutível.
- Então tá. Se você quer o divórcio, eu dou. Mas aquele pijama odioso não vai pra lugar nenhum.
Logo no começo, pedi para ela que comprasse outro pijama. Não suportava vê-la com aquela roupa. Ela achou que eu estava brincando. Fui ficando diariamente mais sarcástico e um dia explodi:
- Joga essa roupa odiosa no lixo!
Vi quão profundamente a tinha atingido quando ela, com voz esganiçada, quase chorando, disse:
- Mas minha irmã trouxe para mim de Paris!
- Foda-se! - Eu disse, insanamente.
Ela ficou muito brava, nunca a vi daquela maneira:
- Foda-se você, imbecil. Eu pelo menos tiro meu pijama durante o dia.
Certo. Eu ficava o dia inteiro de pijama. Resolvi ser arrogante.
- E daí?
Ela enlouqueceu. Acho que a gritaria chamou a atenção do prédio todo.
- Você acha que que meu pijama é odioso? Porque não olha pra a sua cara?
E ela olhou para a minha cara, eu fiquei meio sem jeito.
Dei uma olhada furtiva no espelho e pude ver um rosto todo amassado. Fiquei com vergonha e voltei a encará-la. Aí ficamos em silêncio, um olhando para a cara do outro, os dois de pijama.
Caímos na gargalhada e na cama.
Isso me deu certeza de que nossa relação poderia superar qualquer coisa.
Aí veio o dia da louça.
Ela disse, um dia, que se sentia uma escrava da quarentena.
- Eu acordo, faço café, lavo louça, lavo roupa, passo roupa, limpo seu sapato com álcool em gel, lavo louça de novo, faço almoço, lavo louça, trabalho, lavo louça. E você fica aí, jogando.
- A máquina é que lava a roupa. E eu estou trabalhando. - naquela hora eu estava realmente.
Ela ficou quieta, achei que estava tudo resolvido.
Dias depois comecei a perceber que minhas meias sumiam e que não tinha mais cuecas e toalhas de banho. Os pratos tinham acabado também. Assim como as panelas e os talheres. Nada nos armários. Achei estranho, porque ela sempre tinha um prato limpo, ou uma panela limpa, as meias dela estavam na gaveta e as calcinhas também.
- Amor, cadê minhas cuecas?
- Ué? Pede pra máquina lavar.
Aí foi que olhei pra pia da cozinha e vi a montanha de louça que eu havia usado. Coloquei uma cueca suja mesmo, uma máscara e saí de casa. Entrei na primeira loja. Voltei com uma máquina de lavar-louça. Ela me olhou com um olho muito esquisito.
- Quando eu lavava louça, você nunca topou em comprar uma máquina dessas. - Tinha muita amargura na vós dela.
Fingi que não ouvi, fiquei um pouco envergonhado, mas resolvi colocar logo a louça na máquina para ver se amenizava a crise na relação.
Naquela noite, não caímos na cama. Ela dormiu no sofá e eu fiquei até tarde na lavanderia desencardindo minhas meias e lavando minhas cuecas.
Os dias foram passando e ela foi conquistada pela lava-louças.
Suspirei aliviado. Sim, podíamos superar qualquer coisa. Fiz essa autoafirmação bastante motivado, mas já não estava tão certo da verdade de minhas palavras.
Então veio a omelete.
Depois de uma longa análise e discussão acerca dos prós e contras de nossas atitudes, a popular DR, fizemos as pazes e resolvemos comemorar com uma omelete. Nós dois adorávamos ovos e isso realmente nos unia. Como já não havia a discussão acerca de quem lavaria a louça, resolvemos cozinhar juntos.
- Que bom. - Ela parecia animada. - Eu vou bater os ovos.
- E eu pico a cebola.
- Amor, vamos fazer uma omelete sem cebolas. Podemos colocar manteiga.
Eu fiquei zangado.
- O que manteiga tem haver com cebola? Eu quero cebola.
- Então tá. - E fechou a cara.
- Vamos por alho?
Ela não respondeu. Eu piquei o alho.
- Eu quero brócolis.- A vos dela era ameaçadora, mas não me deixei intimidar.
- Quem é que coloca brócolis numa omelete? Você tem noção de como isso é idiota?
Ela não disse nada. Colocou as coisas na frigideira e soltou:
- Essa cebola está grossa demais.
- Deixa assim. Se você não quer fazer, não faz.
Então ela largou tudo lá e foi pro banheiro. Escutei o chuveiro ligando e ela ficou lá um longo tempo. Bem longo mesmo. Não comeu a omelete. Aí eu lembrei que cebola fazia mal pra ela. Ela sentia muita azia.
No outro dia, ela acordou e me olhou de um jeito estranho. Não disse nada. Fez uma pequena mala e colocou a máscara.
- Eu vou embora. Não suporto mais viver assim.
Eu entrei em pânico, não entendi nada. Ajoelhei, chorei, implorei, pedi perdão.
- Não vai. O que vou fazer sem você? A gente resolve isso.
Ela simplesmente me ignorou, virou as costas e foi embora.
Não falou mais comigo. Mudou de estado, achou outro trabalho e outros amigos. A irmã dela mandou um whatsapp pra mim, perguntando o que tinha acontecido. Disse que nunca a vira tão feliz. Faz um mês, doze dias e vinte e duas horas que ela se foi e desde então acordo e durmo chorando. Ela já reconstruiu toda a vida e eu pareço ter sido apenas um contratempo num tempo paralelo da existência dessa mulher.
Hoje pela manhã, porém, uma luz se acendeu.
- Oi, sou eu. - Era ela quem me ligava.
- Você tem outra pessoa? - Pedi, desesperado. Ela bufou do outro lado, parecia brava. Estraguei tudo.
- Não. Não quero ninguém por um bom tempo. Estou feliz assim.
- Você não quer voltar? - Eu já chorava convulsivamente.
- Não, eu quero o divórcio e o meu pijama.
- Você esqueceu o pijama? Não vê que isso é um sinal? - Agora eu estava esperançoso.
- Perdeu o juízo? Esqueci porque queria sair logo de perto de você.
Não havia jeito. Ela estava irredutível.
- Então tá. Se você quer o divórcio, eu dou. Mas aquele pijama odioso não vai pra lugar nenhum.
Comentários
"e eu pareço ter sido apenas um contratempo num tempo paralelo da existência dessa mulher." foi primoroso.