BANDEIRA NO SÉCULO XXI >> Albir José Inácio da Silva
Vejo sangue na máscara do patrão quando
ele levanta a cabeça em busca de ar depois do último acesso de tosse, mas não
digo nada. Finjo ajustar o retrovisor. Ali está apenas uma sombra do líder que
até ontem, com um sorriso, distribuía ordens, elogios e admoestações aos
empregados.
Estamos no subsolo do mais
luxuoso hospital do Estado. Em frente ao elevador, os dois filhos do Dr. Sansão
confrontam o segurança fardado que repete negativas e balança a cabeça. Júnior
argumenta com determinação, cobra, gesticula - puxou ao pai. Já Isabele não
fala, limpa às vezes uma lágrima. Não há vagas!
Estranhei ontem quando ele me
chamou dizendo que ia pra casa. Sempre sai tarde, ainda mais agora com três
assistentes, uma secretária e dezenas de funcionários afastados por causa da
pandemia.
Aguardei mais de uma hora até que
madame e os filhos o convencessem a procurar ajuda. O plano dá direito a consulta
domiciliar, mas a atendente explicou que não havia médico disponível. Na
emergência receitaram analgésico, repouso, água e boa sorte.
De madrugada Dr. Sansão piorou, a
febre subiu, não conseguia respirar. Ligaram novamente para o plano de saúde. Não,
eles não tinham ambulância com UTI e não teriam nas próximas muitas horas. Ligaram
para mim.
Motoristas sempre sabem muito da
vida do patrão. Antes por causa das confidências e agora também por causa dos
celulares. Eu acompanhei a contratação daquele plano de saúde. “Sala vip,
serviço de concierge, consultas domiciliares, seguro viagem internacional,
corrier, vacinas e suíte presidencial em hospital de luxo” – dizia o corretor. Mas
o mundo mudou, eles não têm médicos nem ambulâncias.
O dia está amanhecendo e estamos
aqui no estacionamento. Júnior esbraveja com os seguranças, que agora já são
três, e Dr. Sansão fala atrás de mim com esforço:
- Plotino, vai lá, pergunta pela suíte
presidencial. Eu tenho direito! - eu vou.
- Doutor Júnior, o Doutor Sansão
mandou falar da suíte presidencial que ele tem direito.
Mas o segurança se antecipa:
- Tem cinco pessoas em cada suíte
presidencial.
Os filhos voltam ao carro. Júnior
está ao meu lado e Isabele com o Doutor Sansão no banco de trás. Ela troca a
máscara do pai em silêncio. A respiração dele agora é um chiado.
Eu tento ajudar:
- A minha cunhada conseguiu vaga
lá em Campos. No SUS...
- É um absurdo pensar em SUS com um plano destes! – explode de novo o Júnior.
- Mas por aqui não há vagas,
Júnior, vamos tentar! – suplica Isabele.
- Mesmo que tivesse vaga em
Campos, são quatro horas de viagem. Papai não aguentaria.
- Dr. Júnior, e o helicóptero? –
pergunto meio sem convicção.
Júnior liga novamente para o
plano e ouve a atendente no viva-voz:
- Não, senhor. Não temos
helicóptero disponível, senhor. E mesmo que tivéssemos helicóptero, não
teríamos para onde levar o seu pai, senhor!
Junior ameaça, vai processar, vai
pessoalmente, vai quebrar a cara... - som de desligado.
Enquanto Junior se exaspera e
Isabele chora, Dr. Sansão parece estranhamente calmo, apesar do assobio
arquejante da respiração. Ele põe a mão no braço do filho e no meu
ombro:
- Chega, Junior. Basta. Acabou.
Vamos para casa! Plotino, põe uma música! Um tango. Um tango argentino.
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