A SALADA DO BRUNCH>>Analu Faria
Bastaria uma chamadinha de lado. Um delicado, educado "Can I talk to you for a minute?", talvez imitando a entonação ascendente dos britânicos quando eles fazem perguntas delicadas. Quando morei na Inglaterra, aprendi que essa entonação denota polidez. Para uma coisa daquelas era preciso muita polidez. Então talvez eu usasse daquela entonação para avisar à simpática chefe da delegação inglesa, assim, num cantinho da sala, que ela tinha um pedaço de alface no dente.
Depois de ver aquele verdinho no sorriso de alguém a gente não consegue se concentrar em mais nada. A moça era articulada e muito profissional, mas, meu Deus, ela tinha alface no dente! Lembro-me também de achá-la despojada demais para uma inglesa, porque usava vestido vermelho, levemente colado, que eu não costumava ver nas mulheres executivas que via na rua em Londres. Mas será que as executivas de Londres também andavam por lá com um pedaço de alface no dente?
Na época em que vivi naquele país, eu trabalhava no McDonalds, em restaurantes, fazendo fund raising na rua etc., então eu via todo tipo de gente, reparava em todo mundo, afinal eu havia saído de uma cidade interiorana no Brasil para viver num dos lugares mais cosmopolitas do mundo. Não diria que era uma coisa muito inglesa um vestido como o da moça da reunião. Mas ela, que tinha um pedaço de alface no dente, também devia estar achando muito esquisito o meu terninho azul cobalto, que eu havia comprado em seis prestações, especialmente para o evento. Talvez eu quisesse parecer meio inglesa. Talvez ela quisesse parecer meio brasileira. De qualquer forma, a mulher tinha um pedaço de alface no dente.
Ela também respondia a todas as perguntas com certa condescendência, o que me irritava um pouquinho, mas aí eu lembrava que ela tinha um pedaço de alface no dente, ficava com dó e a irritação passava. O que mais me surpreendia era que não dava sinais de cansaço e, apesar de ser apenas um dos membros da delegação, as respostas eram quase exclusivamente dela. Às vezes a moça sorria condescendentemente e mostrava ainda mais o pedaço de alface no dente. Eu ficava me perguntando se esse ela achava que nós, brasileiros, não sabíamos nada sobre o assunto da reunião. Tudo bem que os ingleses já tinham experiência em regular um setor que nós apenas naquele momento havíamos começado a querer regular, mas também não era para tratar nossas indagações como se fôssemos crianças. Um comportamento desses, de alguém que sorria com um pedaço de alface no dente, era, como se diz em inglês, "awkward".
A culpa não era inteiramente dela. Foi ideia de jerico do órgão público brasileiro oferecer um brunch e não dar nem um minutinho para que a gente fosse ao banheiro, escovar os dentes. Mas acho que ingleses também não são de escovar os dentes depois do almoço. Se alguém falou para a moça de vestido vermelho que as executivas brasileiras usam vestidos vermelhos levemente colados, também deveria ter dito a ela que escovamos os dentes depois de todas as refeições. Isso evitaria aquele pedaço de alface no dente. Também não era preciso oferecer um prato com folhas, ninguém decente come salada no brunch. E olha que a saladinha tinha outras folhas, talvez agrião e rúcula, não sei dizer. Imagina a moça com um pedaço de agrião no dente? Agrião é mais escuro, contrastaria ainda mais com a cor do vestido.
Fim de dia, lá estou eu morrendo de dó da inglesa. Certamente todo mundo viu que ela tinha um pedaço de alface no dente e ninguém teve a pachorra de contar a ela. Eu teria contado, se tivesse a oportunidade, mas nem um intervalo foi feito depois do desastroso brunch. Entendi, no apagar das luzes daquela exaustiva reunião, que eu não havia comprado aquele terninho caríssimo por nada. O Universo havia me dado a oportunidade de ter uma valiosa lição ali: estamos todos sujeitos a reter pedaços de salada na boca contra a nossa vontade e isso vale até para experientes chefes de delegação que se sentem à vontade em um vestido vermelho levemente colado, num país estrangeiro. Sempre escove os dentes depois de comer.
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