O AMOR QUANDO INESPERADO. MAKTUB >> Zoraya Cesar
Era um antiquário, por certo. Mas eu não o chamaria assim. Havia objetos realmente valiosos, de inacreditável ancestralidade; todavia, misturados com outros de menor qualidade e extração. Sou elitista, confesso.
Vi quando ela entrou na loja, os cabelos cacheados presos por uma fita vermelha, um batom rosado a colorir-lhe a boca. De joias, apenas um pingente de cristal. O vestido já vira melhores dias, mas era bonito e primaveril. Como ela.
Vi quando chegou em casa, desembrulhou os pacotes e limpou os objetos que comprara. Inclusive minha lâmpada de estanho e ferro.
– Ahhhh – suspirei, exitoso, esticando os músculos, respirando fundo. Vocês não sabem como o interior de uma lâmpada pode ser desconfortável.
Ela não pareceu surpresa com minha súbita aparição, o que me causou certo espanto; mas, enfim, seres humanos são estranhos. E eu queria ir embora o quanto antes.
– Querida, serei direto. Vou conceder três desejos. Escolha sabiamente, não seja espertinha – no fundo, temia que ela fosse superficial e estúpida, do tipo “quero mais três desejos”; “quero ser rica”, ou algo parecido. Humanos são tão banais!
- Não me chame de ‘querida’. Não somos íntimos. Meu nome é Lenore. – Ela falou com doçura, mas firme. Seres humanos são tão surpreendentes.
– Então, Le-no-re, quais os seus pedidos? – Estava curioso e ansioso. Pelo desígnio de minha vida esses seriam os últimos desejos que eu deveria conceder. Allhamdulillah! Deus é grande! Então poderia ir aonde quisesse, ser quem eu quisesse. Livre.
– Não tenho pedidos. Estou bem. Sério.
– Não seja idiota, mortal, vocês sempre querem alguma coisa – Por Alá! Os anos que passei enfurnado me transformaram num tosco. Logo eu, criado nos melhores salões de Bagdá. Meu instrutor morreria de vergonha. Ela, no entanto, não pareceu ofendida.
–Sei da minha finitude. Mas estou bem. E você, que tal um suco, um lanche…
E foi então que me dei conta do tempo que passara sem comer ou beber, sem sentir o aroma de um chá de jasmim, o sabor de um figo recém colhido... ou de uma boa torta de rim com cerveja.
Ela me fez sentar à mesa, e serviu-me café e bolo. Confesso que fiquei confuso. Nunca fui servido. Nós, gênios, fomos criados para servir.
À noite, ela arrumou um colchonete no chão da sala. Meu apartamento é pequeno, disse. Pulei na oportunidade e perguntei, esperançoso, se ela não desejaria isso, um apartamento melhor. Ela riu, espontânea: não, obrigada, estou bem. Insisti, e que tal uma companhia, um namorado, namorada, talvez, nesses tempos modernos. Ela gargalhou, realmente gargalhou, e repetiu, não, obrigada. Estou bem.
Minha liberdade estava a três desejos de distância, mas, ali, sozinho, eu só conseguia pensar que nunca provara refeição mais gostosa que aquela. E, quando amanheceu, tive a certeza de que nunca, nem no palácio do sultão Ibrahim, eu havia dormido tão bem.
Depois do café, Lenore me levou à praia. Ofereci-lhe um iate, visitar os sete mares, as ilhas gregas… ela riu e me fez pisar na areia com os pés descalços, entrar no mar, deitar ao sol. Reverenciei os seres invisíveis que regiam aquele templo divino e relaxei. Ela mudaria de idéia. Humanos são tão volúveis.
Enquanto os dias passavam e eu não descobria quais os seus desejos, ajudava-a como podia. Lenore dava aulas de arte em escolas caras e como voluntária em creches pobres. Eu organizava a casa e os afazeres, deixava tudo pronto para que ela, ao chegar, exausta, pudesse se dedicar à leitura, ao crochê... e às nossas conversas. Como era bom conversar com Lenore! Ela sempre ouvia com atenção e queria saber mais. Como era bom vê-la descansada, despreocupada, vê-la rir e chorar com minhas histórias. Eu ri e me emocionei várias vezes com a vida de Lenore. Como é frágil a existência dos humanos.
E, durante todo esse tempo, tentei saber o que poderia lhe dar. Queria minha liberdade.
Quando as noites frescas e as tardes douradas do outono deram lugar às noites frias e tardes prateadas do inverno, Lenore me chamou. |
Quando o inverno chegou, trouxe com ele a saudade das folhas vermelhas do outono e o suspiro de anseio pela primavera. Foi então que Lenore me levou para dormir em sua cama.
Passei a noite a olhar seu rosto tranquilo – nós, gênios, enxergamos muito bem no escuro –, o rosto de quem está bem, não precisa de nada; a ouvir seu ressonar, mais belo que o canto das mais belas huris; a sentir seu perfume de corpo limpo, de sua pele cheiro de maçã.
Ao acordar, seu sorriso iluminou até minhas vidas passadas. Espreguiçou-se, como só os felizes conseguem e, olhando-me bem dentro dos olhos, perguntou:
– Sabe de uma coisa? Me diga você, quais são seus três desejos?
A resposta veio a mim suavemente, como uma pluma voando no primeiro vento da primavera. Abracei Lenore, coloquei sua cabeça em meu ombro:
– Estou bem – respondi – Não preciso de nada.
(E, lá no fundo de minha alma, ou o que seja que os gênios têm, eu sabia que estava livre; e tinha não três, mas apenas dois desejos: ver Lenore para sempre feliz. E partir dessa vida junto com ela.)
foto Freepik: https://br.freepik.com/fotos-gratis/floresta-no-por-do-sol_946227.htm
Essa história foi inspirada num conto de Neil Gaiman, lido há muito tempo. Vou recuperar o título, prometo.
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Essa história foi inspirada num conto de Neil Gaiman, lido há muito tempo. Vou recuperar o título, prometo.
Comentários
Essa Lenora, pelo visto, gosta de levar "gênios" para cama, por isso vive feliz! Segundo muitos médico, injeções de "sumo de gênios" são, entre outras coisas, os melhores anti depressivos do mundo, etc..., para as mulheres!
Só faltaram, para variar, detalhes da "primeira noite" do gênio com a Lenora!
Um texto leve e de leitura prazerosa.
Mas devo confessar que, lá pelo meio da crônica, imaginei que a Lenore manteria o gênio em cativeiro, a ponto de ele desejar voltar para o sossego da lâmpada.