CRÔNICA PARA UM GAÚCHO >> Sergio Geia
Estávamos instalados numa sala
do anexo oito da Universidade do Vale do Paraíba; ele chegou de terno e gravata,
e convidou para que nos apresentássemos. Porém, não era uma simples
apresentação; ele queria mais; ele queria que cada um dissesse também uma coisa
que apreciava fazer nas horas de folga.
Se bem me conheces, honrado
leitor, deves saber que as horas de folga do Geia são destinadas à construção
de valiosos edifícios de palavras (valiosos pelo menos para seu construtor),
que unidos se transformam numa espécie de vilarejo da conversa fiada,
desinteressada, a típica conversa mole, talhada num método que um certo Drummond,
das Minas Gerais, batizou de assunto-puxa-assunto, e que comumente os
especialistas chamam de crônica.
Quem dera me chegue o dia em
que preciosas horas de folga sejam destinadas ao humilde banho de mar, a uma
boa entente com pecados, pescados, e outros derivativos, ao deitar a preguiça na
rede, aos amores eternos e aos casuais, destinando-se as dignas horas de labor
à edificação de novas vilas, cidades ou metrópoles das letras, que, se
merecerem o afeto e a estima de pessoas respeitosas e interessadas como o
senhor, estampem um dia qualquer página de jornal.
Pois o Geia não titubeou
informando ao interessado professor, como também aos colegas, o destino que
dava às suas horas de folga; a informação, que esperava ser chancelada e
devolvida sem rodeios, para se juntar às demais na cesta de prazeres que o
passar dos segundos só fazia avolumar, recebeu do mestre gaúcho comentários
espirituosos e, de chofre, o lançamento de um inesperado desafio: “Bah! Então tu
fazes uma crônica desse nosso encontro aqui?”.
De antemão já lhe digo que a
dificuldade seria enorme. Era um seminário de interesse estritamente
institucional; trazia como mote a proposição estampada no título que encabeçava
a programação: “GESTÃO PARTICIPATIVA: construindo novos cenários”. Tratava-se
de um encontro mui produtivo e consistente a gerar sólidos e bons frutos no
espaço da instituição, mas nunca capaz de gerar uma boa e despretensiosa
crônica.
Normalmente, as crônicas, pelo
menos as minhas (Ah!, e também as do velho Urso), se enamoram de coisas miúdas,
de pouca valia no mundo das vaidades; lembro-me da tartaruga marinha que morreu
em minhas mãos num mar da Bahia, ou da pequena tartaruga que tenho aqui em casa
e me alegra os dias, do desconhecido e sua bicicleta, da pitangueira do
vizinho, das crianças que jogam bola, da borboleta, do outono ou do mar; coisa
barata, que ninguém nota, mas que a lupa do cronista mostra em detalhes. Como
fazer algo sobre coisa tão grandiosa e rica como foi o encontro com o mestre
gaúcho?
Está certo que os dias não se
reservaram apenas às explanações teóricas e oficinas, mas também a almoços e
jantares dignos, a deliciosos petiscos e refeições, a conversas esplêndidas, a
músicas interpretadas por cantores de feliz talento e encantamento, mas tudo,
tudo ainda se ativava no campo das grandes emoções, dos grandes momentos, dos
afortunados e eloquentes encontros, escapando pela grandiosidade, da lupa fina
para virar crônica.
Desanimado da vida, pronto para
desistir, eis que no momento crepuscular, quando o céu tingia-se de violeta e lilás,
e o vento morno prenunciava delícias de um atípico final de semana invernal,
eis que um anjo Gabriel apareceu, e apareceu como uma possível tábua de
salvação nas palavras firmes de seu tenaz avô: “Vô, é verdade que no seu tempo
não existia iPod?”. “Não, Gabriel, não existia”. “Mas vô, e o que vocês faziam
para dormir?”. “No tempo de seu avô nem televisão existia”. “E depois da janta,
vô?”. “A família se reunia em torno de um rádio, ouviam-se notícias, a novela
das oito e programas humorísticos”.
Pois enxerguei a carinha de
espanto do Gabriel se perguntando “mas que raios de rádio é esse de que o vô tanto
fala?”, e enxerguei também um pedaço de doçura bem típico das boas crônicas
nascendo ali, um pedaço de céu azul se abrindo no sisudo tempo dos desafios.
Até que no fim, para encerrar, o
grande mestre arrematou com a humildade dos grandes homens: “Espero que eu
tenha passado aos senhores algo que realmente possa ser objeto de reflexão e
transformação em suas unidades; se assim não o fiz, não foi por falta de boa
vontade; podem acreditar, foi por absoluta incompetência minha, pois aqui,
tenho consciência de que dei o meu melhor” (rogo para que a citação se avizinhe
um tanto do real, uma vez que por absoluta incompetência —agora, deste cronista
—, não a registrei num pedaço de papel).
Na noite morna, sob o manto da
lua vívida, de estrelas e do Cruzeiro do Sul, voltei para casa com uma doce
alegria, pensando que tudo, tudo nessa vida vale a pena quando a consciência ratifica
que o melhor de nós foi entregue com muita boa vontade.
Ilustração: http://www.jovemsulnews.com.br
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