O EXTRAORDINÁRIO >> Carla Dias >>
Acordei com o coração meio apertado. Sabe os dias em que nos levantamos e parece que, apesar de muitas coisas estarem fora do lugar, o que é perfeitamente normal, há essa coisa que não sabemos localizar ou reconhecer, e que tem um peso a mais? E certamente tem mãos, ainda que imaginadas, porque nos aperta o coração ao mesmo tempo em que o afaga.
E me veio à cabeça um pensamento que já é antigo, porque eu costumava tê-lo quando ainda era uma menina. Depois ele adormeceu, e deu de hoje acordar. O pensamento que inquiria: qual foi a última coisa extraordinária que você fez?
A diferença é que, desta vez, eu fiquei em silêncio.
Lembro-me de responder a essa pergunta com as armas que tinha: quem eu era, as situações que vivia. Como quando cuidava da casa para que, quando chegasse, minha mãe não precisasse superar o cansaço que acumulara durante o dia para lidar com os nossos, e pudesse se deitar mais cedo, preparar-se para o dia seguinte, para a suntuosa repetição do árduo. Eu tinha lá meus doze, treze anos de idade, mas já respondia tal questão, confidenciando a mim mesma: foi extraordinário oferecer a minha mãe o tempo de descanso que ela merecia.
A cada dia era um acontecimento nomeado extraordinário, e naquela época, eu sequer sabia exatamente o significado disso. Porém, era extraordinário conseguir puxar baldes de água lá do poço e carregá-los, escada acima, para lavar a louça, para banhar os pequenos. E também perceber as folhas das árvores estampadas no chão de terra, depois de o quintal ter sido varrido. E fazer companhia a minha avó na hora da Ave Maria, para que pudéssemos ampliar os pedidos, mas principalmente, dar conta dos agradecimentos.
Acontece que, desta vez, eu recebo a pergunta com meu jeito de adulta com uma boa cota de desapontamentos. Um olho no peixe e outro no gato, porque não consigo reconhecê-la da mesma forma que antes.
Dou-me conta de que não me convence mais o qual foi a última coisa extraordinária que você fez? Assim como a definição de beleza, o extraordinário depende, completamente, da visão de seu autor. Percebo que há mais valor ainda em questionar: qual foi a última coisa extraordinária que a vida fez por você?
O que realmente me faz compreender o quão longe da sutileza do extraordinário eu ando, é que não há resposta que não seja pensada e repensada. Antes, lá na juventude da ansiedade em viver a vida, eu nem precisava pensar para responder: ajudar a construir o altar da parada da procissão, colocar meus irmãos na cama, não muito tarde!, jogar queimada com as primas e os primos, colher o chuchu e cozinhá-lo para o jantar, levantar-me e ir para a escola aprender o futuro.
O que aperta meu coração, creio, é essa incapacidade de reconhecer o extraordinário no que, adulta que hoje sou, tornou-se a minha lista de necessidades. Acordo e me levanto com o dia programado e longo nos afazeres. E no final dele, aproveito as horas que me restam das 24 prometidas, e cumpridas, para pensar o que foi feito. E então, como pensar no extraordinário se, distraidamente, caminhamos em círculos?
Porém, tenho visto o extraordinário no outro, o que me empolga e traz alento. Como a forma educada com que o senhor ajuda o outro, afetado fisicamente pela idade avançada, a entrar no ônibus. Além da ajuda em si, há o sorriso desse homem, e ele é tão sincero que me comove. Sinceridade me comove.
Quando percebemos que não somos os verdadeiros autores dos acontecimentos extraordinários, tendemos a nos sentir desapontados, mas isso passa. Ainda que sejam esses acontecimentos cotidianos, pelos quais passamos sem a eles conceder a real importância. Acontece que nós gostamos da ideia de sermos autores, de celebrarmos a benevolência, como se tivéssemos, literalmente, a cultivado e feito florescer em solo infértil. Um pequeno milagre. Porém, o extraordinário vai além, tornando-nos instrumentos desses milagres, permitindo que o feito não seja apenas para nós mesmos.
Imagem: unprofound.com
carladias.com
Comentários
Quem manda ele ter chegado antes, né?
Talvez o seu pensamento adormecido que veio à tona seja apenas porque você é protagonista de muitas coisas extraordinárias! E talvez só que esteja de fora é que perceba o bem que você faz com seus escritos. E fazer o bem é extraordinário. :)
Marisa... Ah, o Eduardo é fogo mesmo! Está sempre na frente :)
Poxa, Marisa, suas palavras são muito confortáveis para a minha alma, porque pensar que há essas coisas extraordinárias em mim faz com que eu fique muito feliz.
Zoraya... Ser escritora é extraordinário para mim, mas nem sempre sei se é o mesmo para o outro, que sempre é um bem maior. Não li o Mundo de Sofia, mas não é a primeira vez que me falam sobre ele. Vou providenciar a leitura. E obrigada por me permitir despertar em você, através do meu texto, alguns sentimentos extraordinários.