OS DESSEPULTOS - 2a PARTE >> Zoraya Cesar

Leia OS DESSEPULTOS – 1ª PARTEO professor Barain Samd e seus alunos precisavam de corpos, muitos corpos. Roubados de necrotérios e também de cemitérios. Farley, o assistente, não se incomodava em receber tal material, desde que seu pagamento estivesse em dia. Até que ele percebeu algo muito estranho em um dos cadáveres... 

Farley olhou pelo rasgão no plástico, surpreso. Podia jurar que era seu amigo Patrick, com quem, havia poucos dias, bebera aguardente até caírem. Ali, à luz difusa dos faróis da Ranger e da luminária que pendia à porta do laboratório, ele parecia tão... vivo!

O motorista que trazia os cadáveres grunhiu, impaciente com a demora. Era um tipo esquisito, assemelhava-se a um lobisomem, baixo, atarracado, musculoso e peludo, a bocarra cheia de dentes grandes e amarelados. Farley sentia arrepios perto dele. Apressou-se a tirar o cadáver da caçamba e a pagar ao sujeito o estipulado. Só entrou quando, aliviado,  viu os faróis se afastarem na escuridão.

Lá dentro, olhou melhor. Era mesmo Patrick! Mas, como? Patrick era saudável e forte como uma mula. Farley tocou em sua pele – estava quente e macia, mais se assemelhava a quem caíra no sono e não na morte. Não havia batidas de coração. Então, estava morto. Mas não parecia morto. Farley tremia, nervoso. Ainda pensou em sair antes do amanhecer, mas, apavorado com os estranhos sons que vinham da floresta naquela noite - uma mistura de uivos e terra revolvida - resolveu esperar.

Quando voltou ao laboratório, na tarde do dia seguinte, Farley não encontrou o corpo de Patrick, mas nada perguntou ao professor. Os dias passaram, os cadáveres continuaram a ser entregues periodicamente, cadáveres decentes, pensou Farley, evidentemente roubados de cemitérios e necrotérios. E ele debitou o estranhamento com o cadáver de Patrick a algum problema nos nervos, provocado pelo excesso de aguardente e pelas noitadas de jogatina. Afinal, porque Patrick não morreria? Não morríamos todos? Vai ver, pensou, aquele era um cadáver muito normal, não sou médico, que sei eu de cadáveres?

Uma noite, porém, foi trazido um pacote que também não parecia ter sido roubado de cemitérios ou necrotérios. Assim que os faróis da Ranger sumiram na noite, Farley trancou o laboratório e abriu o pacote na altura do rosto do cadáver. Não reconheceu a quem pertencia o corpo, mas tinha as mesmas características do cadáver de Patrick: quente, macio, sem batimentos cardíacos.

Tomado por um pânico irreprimível, impensadamente resolveu entrar no lugar que lhe era interdito: o sótão, onde eram dissolvidos os cadáveres inservíveis. Não encontrando o interruptor que ligava luz do sótão, pegou uma lanterna e subiu. 

O silêncio era opressivo. As mãos de Farley tremiam e suavam tanto que ele teve dificuldades em segurar a lanterna. O raio estreito e difuso de luz não iluminava a totalidade do ambiente, formando sombras indistinguíveis e aterrorizantes para sua mente já abalada pela suspeita de que algo terrível e pervertido acontecia ali. Derrubou um recipiente, cujo conteúdo rolou pelo chão com um ruído úmido e macabro. Farley não teve coragem de olhar para ver o que derrubara.

Vislumbrou, mais do que viu, restos de velas; a banheira; potes cujo conteúdo amarelado e denso lembravam gordura animal; esquisitos tapetes em variados tons de pele; escalpos sem cabeça e cabeças sem escalpo... E uma cabeça destacada do corpo, sobre uma mesa, que Farley reconheceu como sendo de Patrick. 

Movido por uma irresistível morbidez, Farley aproximou-se, sentindo seus pés pisarem em coisas que estalavam como tomates esmagados, ploft, ploft. Sentiu engulhos, e fixou os olhos à frente, para não ver no que pisava. Provavelmente o conteúdo do pote que caíra.

O couro cabeludo de Patrick tinha sido recortado e depois recosturado de volta à cabeça. O ‘serviço’ ainda não havia sido terminado, deixando à mostra pedaços caídos de pele, o osso do crânio e partes de músculo. Farley molhou as calças, descontrolado. Viu, nos restos da face de Patrick, sangue fresco e – horror dos horrores - teve certeza de que os olhos do morto se voltaram para ele, num mudo pedido de socorro. Sua mente entrou num looping descendente para um território infernal, no qual ele pensava sem parar: ‘o sangue continua pingando, ele morreu há dias e o sangue continua pingando, ele morreu há dias e o sangue continua pingando, ele olhou para mim, ele olhou...’.

Num frenesi, Farley desceu correndo, tropeçando pelos degraus, apenas para seu coração quase sair do corpo ao encontrar o Dr. Barain Samd esperando por ele. 

De braços cruzados, vestido com seu jaleco imaculadamente branco, sorrindo sardonicamente, sim, o Dr. Barain Samd esperava por ele.

Antes que ele pudesse pensar ou reagir, num movimento rápido e calculado o professor passou as mãos nos braços de Farley, esfregando-os com uma gosma verde-escura, que cheirava a pântano. Em alguns segundos as batidas do coração de Farley diminuíram e ele ficou paralisado, sob o efeito da droga que o médico passara em sua pele.

- Você pisou em olhos e testículos que serviriam para meus rituais e para o estudo de meus alunos. Esse material custa caro. Estou pensando em usar os seus olhos e testículos em substituição àqueles. E deixá-lo em estado latente, como seu amigo.

A casa onde se localizava o laboratório.
Qualquer que fosse a decisão de Farley,
ele estaria eternamente aprisionado
ao professor Barain Samd,
amaldiçoado para todo o sempre. 
A mente de Farley congelou. O medo era grande demais para que ele absorvesse todo o horror da situação: o ex-médico e seus alunos estudavam em cadáveres roubados de cemitérios e necrotérios, mas também faziam experiências e rituais diabólicos com corpos em estado de hibernação. Seu subconsciente compreendeu tudo, mas sua mente tentava se refugiar num estado de loucura irreversível. 

- Mas, se me trouxer corpos dessepultos ou em estado vivo-morto, como posso te ensinar a fazer, você escapa de virar um espécime do meu laboratório. Ou a se parecer com o meu motorista. De qualquer forma, será meu prisioneiro. O efeito da droga passará em alguns minutos, preciso saber qual sua escolha... 

Farley desmaiou. Quando acordou, estava amarrado a uma das macas, com vários alunos em volta, olhando-o com curiosidade. E, ao seu lado, sorrindo com seus dentes ebúrneos e cruéis, segurando um bisturi, o professor Barain Samd pergunta, um laivo de cinismo na voz:

- Então, o que vai ser?



Foto: Tristine Penderson in Pinterest

Comentários

Anônimo disse…
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Marcio disse…
Zoraya,
Talvez eu esteja sendo injusto com seus outros textos, mas acho que, neste último, você alcançou o seu melhor estilo - até aqui, claro, pois você tem o dom de superar o aparentemente insuperável.
Sua narrativa tem enorme riqueza de detalhes, e um crescente de tensão realmente primoroso.
Mas a leitura do texto me criou uma preocupação inquietante: qual a fonte de inspiração da autora?
Você deve ser, lá no fundo da alma, uma pessoa bem perigosa...
lenteseimagens disse…
Parabéns à autora pelo extraordinário suspense na medida certa para deixar o leitor ávido por descobrir o mistério!
Deslinde e desfecho irretocaveis!
Soraya
ah, não, eu fui ler de estômago vazio, deu uma revirada, kkk... acho que isso é bom, né? bem realista!!!!
Unknown disse…
Cruz credo, Zoraya. Isso tá pior que a Hora do Pesadelo. Que sinistro. Mas me lembrou uma cena do Greys Anatomy, onde o médico que estava quase morto, ficava, na mesa de operações, tentando dizer aos outros o que deveriam fazer pra salva-lo, mas só na mente dele, pq ele estava meio que em coma rs
Clarisse Pacheco disse…
Clima de tensão irretocável, cenário de pesadelo. Adorei o suspense!!
Nadia disse…
Pensa só, Lady, que belo romance daria essa historia macabra...
Anônimo disse…
Caramba! De gelar a espinha! E Vai deixar a gente sem a continuação????!!!!!!!
Albir disse…
Zoraya, você ressuscita em mim pavores que eu julgava sepultados no passado. Vou lhe cobrar pelos soníferos. Beijos

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