A SENHORA DAS BALAS >> Carla Dias
Como muitas pessoas que já encontrei – ou me encontraram – por aí, eu sabia que era um daqueles momentos em que precisamos que nos escutem. Esperei que respirasse novamente como se não tivesse fim a ida e houvesse apenas incerteza na volta, e olhasse para mim com seu olhar “veja só o que me acontece...”.
Quem me conhece sabe que há duas recorrências curiosas na minha vida: lagartixas – tenho profundo pânico delas, que insistem em aparecer das formas mais inusitadas para mim: caindo na minha cabeça, carregada quando apanho uma porção de sabão em pó com a mão, saindo de debaixo da balança do banheiro e passeando pelos meus dedos, no travesseiro quando acordo...
A outra se trata de pessoas. Elas me param na rua para perguntar algo e, logo depois, começam a contar o que precisam para, ao menos naquele momento, se sentirem melhor. E eu sempre as escuto.
A lista de histórias que guardo comigo, de estranhos que me escolheram como escoadouro de suas angústias, é longa. A maioria dessas pessoas precisava de alguém para escutá-las sem julgá-las pela opereta completa de suas biografias. No entanto, não foram somente elas que se beneficiaram disso. Cada história que me entregaram me ensinaram importâncias.
A senhora das balas, de olhar triste, mas gentil, me encarou e compartilhou comigo uma passagem que a magoou com a profundidade de um abismo. Falou que morava em uma casa de acolhimento, “logo no fim daqui”, apontou a direção, e isso não era ruim. “Olha pra mim, moça. Eu tô vestida e limpa”. O que ela contou não é novidade para mim. Não raro, disse que as pessoas se negavam a comprar as balas. Até aí, faz parte de qualquer negócio, é direito. Mas como queriam se livrar dela logo, jogavam na caixa notas de “até cem reais, acredita?” e faziam gestos para que ela os deixassem em paz, o olhar deles transbordando aversão.
Aversão é o tipo de sentimento que temos aversão que sintam pela gente.
Então, a senhora das balas começou a chorar. Perguntou o que eu fazia ali, parada, “esperando uns amigos”, e sorriu, porque ter amigo é bom. Tendo onde morar e comer, costumava sair para vender balas para ver o mundo, “melhorar a cabeça, ver gente, sabe?”.
Eu sei que o mundo anda esquisito, que o risco é eminente, mas, vamos combinar, o risco está em qualquer lugar, chega a qualquer hora, vem de qualquer tipo de pessoa. A tristeza da senhora das balas era legítima, as lágrimas comprovaram, assim como o tremor que tomou seu corpo miúdo. Fiquei sem saber o que fazer e dizer, porque, dentro da minha cabeça eu repetia: em que tipo de pessoa estamos nos transformando.
Anunciei que meus amigos haviam acabado de chegar. De costas para a rua, ela achou que eu queria dispensá-la e saiu andando, enquanto eu desejava que a vida fosse mais gentil com ela, meu coração naquele aperto de quem não sabe o que mais fazer além de escutar estranhos que precisam falar.
Ela parou mais adiante para ver onde eu iria. Encontrei os amigos, que estacionaram o carro quase em frente do prédio, abraços e sorrisos. Olhei para ela. Ao menos desta vez ela sabia que não era mentira.
Desde então, a cada vez que desaprumo, por um motivo qualquer, lembro da senhora das balas dizendo: “as pessoas precisam tomar cuidado, moça, porque as palavras têm poder.”
Elas têm.
Ela tem.
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