O GATO - PARTE I >> Zoraya Cesar
Nenhum clichê se aplicava ao caso, até então. Não chovia, trovoava ou relampejava assustadoramente. Não era noite cerrada, não havia corujas piando em troncos queimados, a hospedaria não caía aos pedaços, e os hóspedes não andavam de cabeça baixa, sussurrando segredos inconfessos.
Quando ele chegou era plena luz do Sol, e o calor, refrescado por uma suave aragem, que trazia cheiros de mato e água corrente; pássaros cantavam aqui e acolá se viam algumas borboletas; a casa, de estilo colonial, bonita e bem cuidada, era cercada por mata exuberante, os hóspedes pareciam felizes. E, como em qualquer lugar do mundo, examinaram — discretamente, diga-se — o recém-chegado.
Examinaram, mas logo perderam o interesse. Cabelos na altura dos ombros, brinco na orelha e tatuagem já não são marcas registradas de comportamento rebelde há algum tempo; suas roupas eram simples e ele parecia muito cansado. Ou seja, em breve foi absorvido pela paisagem local e devidamente esquecido. Até porque o tal recém-chegado, embora gentil, era de poucas palavras e talvez fosse um tanto antissocial, pois sempre se sentava calado e sozinho às refeições e passava o dia a explorar a floresta.
Um dia, porém, chegou sorridente para a dona da hospedaria, e perguntou-lhe onde estava o gato cinzento que vira naquela manhã.
A mulher, bonita, de uns quarenta anos indefinidos, olhos verdes e redondos como os de uma serpente, convulsionou o rosto tão fortemente que apagou o meio-sorriso que trazia sempre pronto para todas as ocasiões. Essa reação estranha demorou um átimo de segundo, e, inteiramente recomposta, com toda a calma e o meio-sorriso de volta, ela afirmou, categoricamente, não haver e nunca ter havido qualquer gato por ali.
A certeza dela o desnorteou e ele creditou a alucinação ao cansaço e ao estresse.
No dia seguinte, entretanto, o tal gato estava, qual esfinge, a esperá-lo no início da trilha, gracioso, cinzento e, positivamente, tão real, que o rapaz espirrou seguidas vezes, comprovando não só a existência do felídeo como também a ironia do Destino: era alérgico a gatos, seres imprescindíveis a seu oficio. Deitou-se ao Sol, para descansar, Deus, como precisava descansar. O gato deitou-se também e ficaram os dois a dormitar boa parte da tarde, apenas percebendo o canto dos pássaros, a azáfama incessante das formigas e o cheiro de terra úmida perto do córrego.
À noite, mais relaxado, foi dormir se indagando por que a hospedeira mentira. Dormia profundamente, como há muito não conseguia, quando, no meio da madrugada, mais exatamente às 3 horas, acordou sobressaltado, com o barulho de miados insistentes e lamurientos. Levantou, olhou pela janela e sentiu arrepios tão violentos que seu corpo todo tremeu. O felino cinzento miava em direção ao quarto da hospedeira, porém, mesmo sob a forte luz de uma lua cheia, não havia sombra alguma projetada no meio do gramado onde o gato estava sentado.
Ele correu escadas abaixo, as pernas ainda bambas. Ao chegar no jardim, porém, o animal já não estava. Ainda procurou em volta, mas não viu, literalmente, nem sombra do gato. Todas as janelas continuavam fechadas e um silêncio não quebrado nem pelos bichos noturnos ou pelo vento se abatia pesadamente no lugar. Voltou aos seus aposentos, desolado. Ou ele estava, definitivamente, tendo um ataque de nervos — o que, na sua profissão significava aposentadoria — ou, também definitivamente, algo muito bizarro estava acontecendo ali, e envolvia a hospedeira de olhos de serpente e o gato sem sombra. E agora, ele também.
No dia seguinte, não encontrou a hospedeira, nem ouviu qualquer referência, nas conversas do café da manhã, aos acontecimentos noturnos, ou sobre a existência de um enorme gato cinzento que, aparentemente, só ele via e ouvia.
Saiu em direção a uma das trilhas. Como previra, o gato estava lá, quietamente a esperá-lo. Embrenhou-se no mato, pensando, um pouco incoerentemente, que era melhor o bichano saber o caminho de volta, ou ele nunca mais conseguiria sair dali.
Chegaram a uma clareira, no fundo da qual se escondia um poço, já meio carcomido pelo abandono, invadido pelas heras. Ele se aproximou, cautelosamente, como a experiência lhe ensinara, e viu que o poço estava aterrado, não havia água. Sentiu algo estranho, mas não conseguiu precisar o quê, e resolveu voltar. Já entardecia, o trajeto era longo e a última coisa que desejava era ficar perdido na mata fechada — seus nervos não estavam firmes o suficiente e o gato sumira. Bicho idiota, pensou, vou acabar perdido aqui nesse ermo.
No entanto, seu senso de direção continuava impecável — outro atributo necessário ao seu trabalho — e ele conseguiu encontrar o caminho de volta. Quase no final do percurso, ouviu uma espécie de canção que lhe pareceu familiar. Esgueirando-se silenciosamente, viu, às últimas luzes do crepúsculo, o que seria a cena mais extraordinária de sua vida, não fosse sua própria vida já tão extraordinária.
A hospedeira, trajando uma túnica inteiramente negra, cavava perto de uma árvore, entoando uma cantiga em língua morta. O buraco aberto era pequeno, mais parecia uma cova e, de repente, ele teve uma intuição do que a mulher procurava. Procurava saber se o gato cinzento continuava enterrado onde fora colocado.
Continua no dia 11 de abril, a partir das 10h, a hora da Roda da Fortuna, da lei dos sucessivos começos...
Comentários
Pat Rochinha
AMEI sua a cronica. Um gato, com mais mistérios do que já cabe em qualquer felino. Ainda por cima cinza, e sem sombras!
Não vejo a hora de chegar a próxima crônica, para descobrir também o ofício do protagonista.
Mas que a dona da pousada tem um jeito de bruxa má, isso ela tem...
E ai dela se matou o bichano em tempos anteriores - vai se ver comigo!
bjs
Cecilia