Céu azul de outono, sol forte, calorão
de verão. Apesar do calor, um ventinho entra pela sacada. Anima. Dá vontade de
colocar Skank, de ouvir “Balada de um amor inabalável”. Não ouvir Skank — quer
dizer, o álbum todo —, ouvir apenas a “Balada”, somente ela e nenhuma mais.
Coloco o CD no aparelho, sento no sofá, respiro fundo, olhar lá fora, no céu
azul, no sol que ilumina casas e prédios, a “Balada” vai entrando, tomando
conta.
Mistura de céu azul, sol forte, dia
quente, não me pergunte que no momento sou incapaz de responder, mas esses
elementos sempre me remetem à minha avó, Ita, que todos a chamavam de Ita, mas
que se chamava, na verdade, Maria Antonieta. Lembro dela se arrumando pra sair,
vestido estampado, toda perfumada, às vezes passava o dedo molhado atrás de
minha orelha, eu sentia um geladinho perfumado. Sempre me levava junto, e
nessas vezes, certamente na maioria, o céu era azul, o sol forte, o dia quente
— pelo menos me vem agora essa ideia. Não se trata de lembranças, “ah, quando
eu saía com a minha vó o dia estava assim, assado”, mesmo porque nem lembro
concretamente desses passeios. Mas lembro algo do tipo, e se o dia está assim
como hoje, lembro dela, que deve estar no céu, costurando para anjos, arcanjos
e querubins, ou para os maltrapilhos mesmo, que, de repente, chegam estropiados
do Purgatório.
Dona Ita era uma excelente
costureira. Costurava todas às segundas-feiras para os mais necessitados no
Convento de Santa Clara. Lembro que no quarto de sua casa tinha uma máquina
de costura. Vez em quando, eu sentava nela pra pilotar. Ela achava engraçado.
Todos os anos ela me presenteava com uma blusa de lã (eu adorava). Certa vez,
ela costurou uma blusa parecida com a que o Leão usava no jogo: na frente era
listrada, uma lista branca, outra verde, uma lista branca, outra verde, atrás
era toda verde.
Outra lembrança: vó Ita ouvia todos
os dias o programa de rádio do Silvio Santos. Sim, o Silvio tinha um programa
no rádio. Eu chegava em sua casa, lá estava ela na sala costurando, ladeada de
seu pequeno rádio que propagava vozes que eram do Silvio, do Nelson Rubens, do
Décio Piccinini.
Quase todos os domingos almoçávamos
em sua casa, na Barão, a família toda reunida. Minha mãe, meu pai e eu. Vinham
de Campos do Jordão tia Tutu, tio Paulo, João, não lembro se Zé já era nascido.
Viviane vinha de Pinda com o Neto. Nesse tempo, meu avô ainda vivia. O cardápio
era sempre igual: macarronada e frango. Às vezes minha vó fazia doce de
abacaxi, ou charlote, de sobremesa. Lembro de uma mesinha vermelha de madeira que
arrumavam pra mim no quintal; eu almoçava lá, e quase sempre o céu era azul.
Escrevo isso hoje e juro, juro por
Deus que desconheço a razão que fez minha mente viajar para essas lembranças,
que poderiam ser doces, mas que deixam um gosto amargo na boca. Na verdade,
apenas queria ouvir a “Balada de um amor inabalável”, coloquei o CD no
aparelho, sentei no sofá, foi quando bati o olhar no céu, no sol (você sabe o
resto).
O vil metal às vezes mata uma
família. Matou a minha. Até hoje me sinto destroçado, e choro às vezes com
saudades de tanta coisa.
Vó Ita morreu triste, abandonada por
uma de suas filhas, por dois de seus netos, um abandono cruel e totalmente sem
sentido.
De inabalável nosso amor não teve
nada. Ele implodiu, como esses prédios
velhos colocados abaixo por explosivos abraçados às colunas de sustentação. Em
cinco segundos, raízes, laços, afinidades, amores, preocupação, presença, uma
história profunda e intensa, tudo virou pó, poeira, como se nunca tivessem
existido, e se foram, longe, levados pelo vento.
O mais estranho é pensar que uma
balada que fala de um amor inabalável, sublimando um céu pintado de azul, possa
despertar tamanhas inquietações.
Comentários
parecia um espelho, pequeno violão vermelho que chorava em sua mão.
Passado bem distante, inesquecível e empolgante com as notas da canção,
com uma vós aveludada o menino então cantava tocando com emoção,
Era pequeno e talentoso aquele filho único, que eu considerava um irmão,
com seu violão vermelho a serenata ali na praça, paras meninas do sobrado.
O karaokê veio depois, com a guitarra, o microfone, o pedestal em sua banda,
aposentaram o vermelhinho encostado ali sozinho na parede daquele quarto,
que ensinou ao coração que o começo da canção tem um fim para aquela história.
do menino do violão vermelho refletindo no espelho ao cronista aqui agora,
que conta ao que sorriu, encanta ao que não viu, as crônicas de sua história.
obrigado cronista amigo!